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Categoria: Lenda Urbana
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artigo de Peter Burger, publicado em Magonia 56, junho de 1996
Tradução gentilmente autorizada, colaboração de Vitor Moura
 
 
Por quase dez anos uma história horrível tem assombrado a mídia mundial: crianças da América Latina têm seus rins e córneas roubados para o benefício de americanos ricos. Uma análise mais aprofundada dessas histórias de horror revela que são baseadas apenas em rumores e lendas. Seqüestro de órgãos, a versão contemporânea de uma lenda antiga e universalmente conhecida.
As primeiras imagens do documentário mostram um homem com uma barba rala balançando a cabeça para frente e para trás como se estivesse em transe. A câmera dá um zoom em seu rosto, mostrando-nos que nos seus olhos faltam a íris e a pupila. A cena seguinte é feita a portas fechadas. Um parente mais jovem pergunta em espanhol: “O que eles tiraram?” O cego responde: “Minhas córneas”. O menino puxa as pálpebras do olho direito. Sobrepondo-se ao tecido branco nebuloso, o título aparece dizendo: Ladrões de Órgãos.
O nome do homem cego é Pedro Reggi. Ele tem 26 anos e vive em uma pequena vila a quase 100 km de Buenos Aires. Suas córneas, diz a voz do narrador, foram roubadas durante um período que passou na instituição mental Montes de Oca.
Ladrões de Órgãos (‘Voleurs d’yeux’) foi dirigido pela jornalista francesa Marie-Monique Robin, uma das mais influentes divulgadoras da mensagem chocante de que na América Latina os órgãos dos pobres são roubados em benefício dos ricos. Os destinatários podem ser americanos ricos, mas as córneas roubadas são obtidas também por cirurgiões para transplantes na França. A mensagem de Robin não foi ignorada. Seu documentário foi exibido em vários países e mostrado três vezes em reuniões das Nações Unidas. A reprise na televisão francesa em janeiro de 1995 atraiu mais de três milhões de espectadores.
Robin também vendeu sua história para revistas estrangeiras. Em Life (outubro de 1993) ela descreve Reggi como tendo “o rosto emaciado de Jesus Cristo”. Em um semanal holandês [1] Reggi é descrito como “o menino com o rosto de anjo”, que “uma vez teve um belo par de olhos castanhos, onde agora existem apenas dois buracos”.
Esta última afirmação é um exagero: os olhos de Reggi podem parecer horríveis, mas qualquer um pode ver que eles não são buracos. Além do mais suas córneas ainda estão lá também, como alguém com conhecimentos técnicos em cirurgia oftalmológica pode dizer. Eu assisti a Ladrões de Órgãos com a oftalmologista holandesa Sra. H. Volker-Dieben, membro do conselho da Dutch Cornea Foundation. “As córneas estão nubladas”, ela me disse. “Isto se parece com o tecido da cicatriz causada por infecções antigas, tanto quanto posso julgar a partir das imagens do vídeo. Para estar completamente certa, eu teria que examinar os olhos eu mesma, usando o tipo certo de luz”.
Então as córneas de Reggi não foram roubadas? Não, o alegado roubo teria certamente deixado suas órbitas vazias. Normalmente, para retirar as córneas de um doador falecido o cirurgião do transplante irá extrair o olho na sua totalidade, substituí-lo com uma bola de plástico do mesmo tamanho e, por fim, colar as pálpebras juntas.
A observação da oftalmologista holandesa coincide com os registros médicos que se tornaram públicos depois da aparição de Reggi em um documentário britânico-canadense anterior sobre o tráfico de órgãos, The Body Parts Business: Reggi nasceu com glaucoma bilateral. Ele perdeu a visão devido a doenças oculares. [2]

Os Olhos de Jeison

A história de Pedro Reggi não é o único episódio controverso em Ladrões de Órgãos. Em uma inspeção mais cuidadosa do clímax emocional do documentário, a história de Jeison Cruz Vargas, de 10 anos, o menino cego fotogênico com a flauta, acaba por ser igualmente duvidosa.
No documentário Robin encontra Jeison no Institute for the Blind, em Bogotá, Colômbia. Sua mãe Luz se lembra de levar Jeison para um hospital nas favelas quando ele precisou de tratamento para uma diarréia. Ao vê-lo novamente no dia seguinte, seus olhos tinham sido removidos. O prontuário médico do seu filho havia sido destruído, ela disse. “É um hospital para os pobres, é por isso que essas coisas estão acontecendo aqui. É o pior hospital do mundo.”
Desde que Robin veio a público com a história de Jeison, esta versão dos acontecimentos foi veementemente contestada, tanto pelos envolvidos do hospital – Salazar de Villeta – quanto pelo governo colombiano. De acordo com uma declaração (4 de fevereiro de 1994) do ouvidor colombiano para a Saúde e Segurança Social, Jeison nunca passou por uma cirurgia ocular. Aos quatro meses de idade ele foi internado sofrendo de desnutrição severa, desidratação e uma série de doenças graves, incluindo uma infecção do globo ocular com Pseudomonas e infecção da córnea. Provavelmente porque os seus pais eram muito pobres, eles pararam o tratamento e levaram a criança a um médico herbalista. A infecção destruiu sua visão.
A contenda sobre os olhos de Jeison atingiu um clímax após o documentário de Robin ter recebido o Prêmio Albert Londres em maio de 1995, a mais prestigiosa honraria paras os jornalistas franceses. Consciente do fato de que as declarações pelos médicos e funcionários colombianos não possuem muito peso na França, a embaixada colombiana levou Jeison (agora com 12 anos de idade) num vôo para Paris em agosto de 1995, a fim de ter seus olhos examinados por dois renomados especialistas franceses em doenças infecciosas e oftalmologia. Um pediatra avaliou os prontuários do menino. [3]
Em seu relatório, os médicos franceses observaram que os globos oculares, apesar de atrofiados, ainda estavam lá, assim como partes da córnea. A infecção que irremediavelmente prejudicou a sua visão é muito comum em crianças desnutridas do Terceiro Mundo. Novamente, os olhos de Jeison não foram roubados.
Além disso, os médicos afirmam, é impossível remover as córneas de um doador vivo sem causar uma hemorragia severa, e nenhum cirurgião em sã consciência usaria as córneas infectadas de Jeison para transplante já que elas iriam matar o destinatário. Pode-se acrescentar que, com suas 28.000 mortes violentas por ano, a Colômbia não tem escassez de doadores de qualquer tipo. De acordo com a lei colombiana, todos são doadores em potencial a menos que a família faça objeção. [4]
Envergonhado pelo resultado do exame médico, o júri do Albert Londres suspendeu o prêmio de Robin e prometeu reanalisar o seu documentário. [5] Robin, enquanto isso, não saiu do lugar. Para sustentar que os olhos de Jeison foram roubados, ela recorreu a teorias da conspiração cada vez mais improváveis e argumentos ad hominem. Os arquivos poderiam ter sido forjados – afinal, por que o hospital colombiano levou dois anos para produzi-los? “O que vale mais”, ela perguntou, quando confrontada com o relatório, “o testemunho oral de uma mãe, ou a palavra de um grupo de especialistas que intervêm 12 anos após o fato e cujo interesse é fazer as pessoas duvidarem da existência do tráfico de órgãos (por razões de solidariedade profissional, um gosto comprovado de sigilo, amizades internacionais estabelecidas durante o curso das suas carreiras)?” [6]
Ela também não acha que o establishment médico é o único culpado. Quando eu falei com ela em fevereiro de 1995, Robin afirmou que a mãe de Jeison e outras testemunhas e autoridades todas retiraram suas queixas sob pressão da United States Information Agency. [7]
Na verdade, a USIA, uma instituição governamental que combate a propaganda anti-americana, quer empreender uma campanha contra Robin. Desde 1988 ela tem publicado uma série de relatórios de forma sistemática, repudiando as acusações de roubo de órgãos. Isso começou como uma reação à propaganda da guerra fria da KGB, em que os Estados Unidos seriam os responsáveis ​​pelo assassinato de crianças sul-americanas. A KGB desapareceu, mas as histórias de atrocidades ainda estão entre nós assim como está a campanha anti-rumor da USIA. Robin culpa o oficial responsável pelo pessoal da USIA, Todd Leventhal, por muitos dos seus contratempos, e até mesmo sugeriu que ele estava implicado no roubo de seu carro. Mais tarde, ela recebeu ameaças de morte por telefone e na internet. Como ela várias vezes me disse: “É como um thriller.”

Joãozinho e Maria

Marie-Monique Robin não foi a primeira a chamar a atenção para a máfia de órgãos. Histórias sobre órgãos roubados apareceram pela primeira vez na imprensa mundial em 1987. [8] Em 2 de janeiro desse ano um jornal hondurenho relatou que crianças com deficiências foram vendidas para os EUA como uma fonte de ‘peças de reposição’. Treze crianças haviam sido descobertas em quatro casas de engordes (“casas de engorda” – tons da fábula de ‘João e Maria’). A fonte destes relatos foi Leonardo Villeda Bermudez, secretário-geral da comissão de Honduras para o bem-estar social. Em 3 de janeiro, no entanto, este funcionário se retratou de suas acusações, explicando que ele apenas tinha repetido as hipóteses não confirmadas dos assistentes sociais.
Posteriormente casos na Guatemala e Peru seguiram o mesmo padrão: relatórios alarmantes mas não fundamentados que foram removidos assim que foram publicados. Porém, como a má notícia é mais interessante do que a boa notícia, as divulgações iniciais foram freqüentemente relatadas pela imprensa, enquanto que os posteriores desmentidos foram ignorados. Este é um vício profissional dos jornalistas, o que pode ser ainda mais forte para aqueles que têm um machado ideológico para amolar. Sem surpresa, no final dos anos oitenta as histórias de horror sobre roubo de órgãos eram avidamente recolhidas e publicadas pela imprensa soviética, que no mesmo período endossou o boato de que o vírus HIV havia sido criado artificialmente em um laboratório americano de guerra biológica. [9]
O Parlamento Europeu também duas vezes se pronunciou contra o roubo de órgãos. Em 1993, aprovou uma resolução condenando o tráfico de órgãos. A resolução foi baseada em um relatório do socialista euro-parlamentarista Leon Schwartzenberg. Neste relatório, o ex-ministro francês da saúde pública descreve as conseqüências médicas, éticas e sociais da falta de doadores de órgãos e salienta a existência de uma máfia de órgãos homicida.
A própria idéia de que traficantes cínicos literalmente vendem a carne de crianças do terceiro mundo evoca fortes sentimentos de tristeza e compaixão. Isso em nada facilita uma análise imparcial e clínica dos fatos. Schwartzenberg ainda desclassificou os céticos igualando-os aos negadores do Holocausto: “Negar esse tráfico é comparável a negar a existência das câmaras de gás na última guerra”.
Ninguém nega que em alguns países (como por exemplo, Brasil, Índia e Egito) os pobres oferecem os seus órgãos para venda. A este respeito, o tráfico de órgãos é uma realidade. No entanto, os peritos em transplantes não estão preparados para assumir a existência de um comércio de órgãos de grande escala controlados por uma máfia. Casos específicos, como os de Pedro Reggi e de Jeison não resistem a uma análise. Em geral, o roubo de órgãos não é plausível porque transplantes clandestinos exigem uma equipe altamente qualificada e equipamentos médicos sofisticados que não são encontrados nos países onde se diz que os ladrões de órgãos agem. Como o diretor médico do euro-transplante Guido G. Persijn me disse:
“Claro que é possível seqüestrar pessoas, anestesiá-las e roubar um de seus rins, mas para isso você também precisa de um destinatário, e o destinatário precisa ter um grupo sanguíneo e um grupo de tecidos compatíveis. Você precisa de uma tipagem HLA … E como você pode ter certeza que este Sr. X que você tirou das ruas é um doador adequado em primeiro lugar? Ele não está sofrendo de uma doença renal, nefrite, ou HIV? Você precisaria de uma organização imensa. Simplesmente não vale a pena”.
Mesmo os mais fortes indícios de roubo de órgãos, tais como os relatórios de retirada dos rins na Índia que surgiram em fevereiro de 1995 [10], são ambíguos, na melhor das hipóteses. Os pobres habitantes de uma aldeia de Bangalore se candidatavam a um emprego na cidade e eram destituídos de seus rins, sob o pretexto de um check-up médico de rotina. Um especialista, um médico e dois atravessadores foram presos. A revista alemã Der Stern deu a notícia com um artigo intitulado ‘Roubo de órgãos na Índia comprovado pela primeira vez’.
Na verdade, as fotos do Der Stern de homens e mulheres indianas ostentando enormes cicatrizes apenas mostram que a Índia tem uma proporção significativamente maior de habitantes com apenas um rim do que países mais ricos. Em março de 1995, mais oitenta pobres supostas vítimas foram registradas na polícia de Bangalore. Ainda de acordo com o comissário de polícia da cidade, apenas uma pequena fração delas realmente foram roubadas; supostamente, as outras venderam um de seus rins e estão esperando receber uma remuneração mais elevada, mediante o registro de uma queixa. [11]
Mas por que esperar que evidências conclusivas sejam encontradas? Quando liguei para ele em fevereiro de 1995, Stan Meuwesse, diretor da sucursal holandesa da Defence for Children International (uma organização que combate o trabalho infantil, a escravidão, a prostituição infantil e outras formas de abuso infantil) afirmou que o roubo de órgãos é uma realidade. “Os fatos e dados aceitos sobre o abuso de crianças são tão avassaladores, que isto tem que ser verdadeiro também”, ele disse, repetindo um argumento expresso por outros representantes de Organizações Não-Governamentais no campo dos direitos humanos. Quem poderia acreditar, perguntou Meuwesse, que aos seis anos de idade meninos paquistaneses são forçados a trabalhar como jóqueis de camelos nos Emirados Árabes? Ainda assim, este é um fato incontestável.
Meuwesse ressaltou que ele nunca tinha visto um relato “consistente, confiável e claro” sobre as córneas e os rins roubados. Tudo o que continuava a haver eram as histórias que estão sendo repetidas uma e outra vez: histórias, Meuwesse disse, que convencem a todos na comunidade dos direitos das crianças.

Criminosos Lendários

Em Ladrões de Órgãos uma daquelas histórias recorrentes é contada pelo deputado mexicano Hector Ramirez, membro da comissão parlamentar encarregada da investigação do tráfico ilegal de órgãos. Ramirez relata o caso de um menino que foi seqüestrado no mercado no quarteirão Extapalapa e apareceu dois meses depois no mesmo local com uma cicatriz nas costas marcando o lugar onde um de seus rins havia sido extraído.
Ramirez: “A mãe dele o fez ser examinado por um médico. Isto confirmou as suspeitas dela. Quando o menino voltou para a sua família, ele levava 2.000 dólares com ele. Entrei em contato com sua mãe, mas ela não quis dizer nada. Ela estava muito assustada. Com o dinheiro ela poderia cuidar dele.
Por falta de nomes, imagens ou documentos, é impossível verificar essa história. O relatório oficial de Ramirez não a menciona. A equipe de Robin não conseguiu localizar uma vítima ou uma testemunha no México. A história parece improvável: por que esses criminosos supostamente implacáveis simplesmente não mataram a testemunha em vez de devolvê-la à cena do crime, com 2.000 dólares no bolso? Atos ocasionais de bondade como este nunca haviam sido relatados em outros ramos do crime.
Se esta história é convincente ou não pouco importa, o apelo não está em seu realismo, mas no ponto de vista moral que aborda. A história graficamente expressa uma mensagem que fala ao coração dos mexicanos pobres e dos ativistas dos direitos humanos em todo o mundo: os americanos pensam que podem usar os habitantes da América Latina da maneira que quiserem em troca de um pouco de dinheiro no bolso. Tudo na história de Ramirez lembra uma lenda contemporânea: um conto que aparece repetidas vezes em diferentes formas, mas sempre parece ter ocorrido recentemente. É só virar a esquina onde vive o contador de histórias. Histórias fantasiosas como esta, entretanto, podem ter conseqüências reais. Na Colômbia, Argentina, França, Suíça, Holanda e em outras partes do mundo, as doações de órgãos caíram muito como resultado desses rumores, afirmam as organizações de transplante.
E “tiveram um efeito devastador” sobre as adoções internacionais, diz Susan Cox, presidente da Holt Adoption Services em Oregon, uma das agências que ajudam anualmente 8.000 crianças a encontrar um lar com pais americanos. Na Turquia, os funcionários proibiram adoções por estrangeiros depois que o mito dos ladrões de órgãos pegou. [12] Como os sociólogos estão acostumados a observar: Sempre que as pessoas experimentam uma situação como se fosse real ela irá se tornar real em suas conseqüências. A verdade desta máxima é revelada de forma ainda mais dramática pelo pânico de roubo de órgãos da Guatemala em 1994.

Linchamento para Seqüestradores de Crianças

Guatemala, 8 de março de 1994. [13] A turista norte-americana Melissa Larson (37) está bebendo um copo de suco de abacaxi no mercado da aldeia de Santa Lucia Cotzumalguapa. De repente ela se encontra cercada por moradores indignados e é acusada de ser uma seqüestradora de crianças. Para protegê-la da multidão, Larson é presa e levada para fora da aldeia pelas autoridades. Quando os moradores descobrem que ela foi embora, eles se voltam contra os seus protetores, queimando a delegacia de polícia e incendiando dez carros. Foram necessários 500 agentes policiais, reforços do exército e carros blindados para restabelecer a paz. Larson, após 19 dias de prisão, teve a sorte de escapar.
Menos sorte teve June Weinstock, de 51 anos de idade, que chegou a San Cristóbal para assistir as celebrações da Páscoa. Em 29 de março os moradores perceberam-na fotografando os seus filhos no mercado e acariciando um menino. Uma mulher que perdeu de vista seu filho de 8 anos de idade na azáfama olha para Weinstock com desconfiança. “Talvez a gringa tenha posto o rapaz na mala”, brinca o vendedor de sorvetes.
Weinstock se torna o centro de uma multidão cada vez maior: há uma ladra americana de crianças na cidade! Ela também precisa de proteção policial, já que mil habitantes cercam a delegacia. Cinco horas depois, ela é arrastada para fora e brutalmente espancada. Weinstock entra em coma e tem que ser hospitalizada. Ela sofreu oito facadas, teve uma fratura da base do crânio e os dois braços quebrados. Por então o menino perdido já estava há algum tempo de volta para a sua mãe. Isso nunca teria acontecido sem os rumores que precederam os acontecimentos. Dizia-se que os estrangeiros de cabelos compridos faziam as crianças de vítimas. Um menino de rua tinha tido as suas córneas roubadas; o bolso estava recheado com cédulas de dólares americanos. Oito bebês foram encontrados com os seus corações arrancados. Um tinha uma nota de cem dólares presa na ferida aberta com uma nota dizendo “Obrigado por sua cooperação”.
Pichações advertiam os americanos de que não eram bem-vindos: “Gringos ladrões de crianças, voltem para o seu país”. A histeria foi alimentada em La Prensa Libre (13 de março de 1994), o diário de maior circulação da Guatemala, retratando o comércio de órgãos na forma de um panfleto publicitário. Dez órgãos utilizáveis ​​são exibidos como carne em um supermercado, com os preços que eles valeriam nos Estados Unidos. Na etiqueta do preço do coração se lê $ 100.000, um rim vale US $ 65.000 e uma córnea valia uns meros $ 2.500 no mercado negro.

Êxodo de Crianças

Então, de onde essas histórias vêm? Como as famílias de Jeison e Pedro Reggi vieram a acreditar que a cegueira de seus filhos foi causada por ladrões? Aparentemente, essas histórias não foram inspiradas em crimes reais. Assim, elas poderiam ser o fruto de propagandas esquerdistas enganosas disseminadas por jornalistas, como a Agência de Informação Americana tem repetidamente sugerido? Em seu mais recente relatório sobre Os Rumores do Tráfico de Órgãos de Crianças (dezembro de 1994), a USIA não é tão pesadoa com os “grupos de vanguarda soviética”, como costumava fazer; ela fornece informações muito úteis, mas ainda não explica o fenômeno.
Ambas as partes – os crentes humanitários e os céticos do governo americano, mas acima de tudo os crentes – subestimam o poder das próprias pessoas de desenvolver e difundir explicações não oficiais como uma reação às circunstâncias e tensões do momento. Em outras palavras, eles subestimam a sua capacidade de criar rumores. Essas histórias se originaram em cidades latino-americanas, não em um ministério russo da era comunista.
O estudo mais detalhado desses boatos foi feito pela folclorista Véronique Campion-Vincent de Paris. Campion-Vincent, que chegou a acompanhar o boato de roubo de órgãos durante anos, sustenta que isso é muito mais do que propaganda cínica. Em vez disso, o boato é a síntese irreal de duas conseqüências reais da pobreza que afligem a América Latina: adoção e tráfico de órgãos. [14]
As crianças de países latino-americanos são muito procuradas no mercado de adoção. Na época dos atentados de turistas americanos na Guatemala, em média vinte crianças por semana eram adotadas desse país, metade delas por americanos. Nem todos os pedidos de casais americanos e europeus para a adoção de uma criança latino-americana são satisfeitos por meios legais. Os documentos são forjados, as mães vendem os seus bebês e até seqüestros ocorrem. Casas clandestinas de adoção de fato existem e são freqüentemente descobertas pelas autoridades. O povo se refere a este êxodo das crianças com sentimentos mistos: como será o futuro dos filhos? Será que eles não pertencem mais ao nosso país?
Como vimos, a venda de partes do corpo pertence à realidade dos países do terceiro mundo também. Rumores sobre o roubo de órgãos, disse Campion-Vincent, postulam uma conexão imaginária entre os dois fenômenos: de acordo com o boato, as adoções servem ao comércio de órgãos.
Um terceiro fato da vida na América Latina que alimenta o boato é o elevado nível de violência cotidiana, vividamente descrito pela antropóloga Nancy Scheper-Hughes em um capítulo deprimente de seu livro Morte Sem Lágrimas. [15] Scheper-Hughes compartilhou a vida dos pobres em uma comunidade no Nordeste do Brasil, uma região onde o “desaparecimento” é uma forma assustadora e de maneira alguma imaginária de deixar esse mundo. Os corpos das vítimas anônimas podem aparecer de um lado da estrada, seus órgãos genitais cortados e os olhos arrancados. A violência é uma característica tão rotineira do mundo em que essas pessoas vivem que elas não podem tomar por certo serem donas sequer de seu próprio corpo. E assim, a partir de meados da década de 1980, a ansiedade dos pobres produziu os rumores do tráfico de órgãos.
“Dizia-se que os hospitais de ensino do Recife e grandes centros médicos em todo o Brasil estavam engajados em um tráfico ativo de partes do corpo, um tráfico com dimensões internacionais. Os moradores de favela relataram vários avistamentos de grandes vans azuis ou amarelas conduzidas por agentes externos (geralmente norte-americanos ou japoneses), que se acreditava patrulhavam as vizinhanças à procura de pequenas crianças de rua a quem os motoristas erroneamente pensavam que ninguém nas favelas superpovoadas daria por falta”. [16]
Segundo Scheper-Hughes, os habitantes do primeiro e do terceiro mundo defendem pontos de vista incompatíveis da doação de órgãos:
“Enquanto os europeus ocidentais e os norte-americanos continuam a pensar nos transplantes de órgãos como “presentes” doados livremente por pessoas amorosas e altruístas, para as pessoas do Alto, cujos corpos são tão rotineiramente abusados pelos ricos e poderosos (nas trocas econômicas e simbólicas que tenham dimensão internacional), o transplante de órgãos implica menos num presente e mais numa mercadoria […] Os rumores brasileiros expressam as percepções das pessoas pobres, baseadas em uma realidade econômica e biotecnomédica de que seus corpos e os corpos de seus filhos podem valer mais mortos do que vivos para os ricos e poderosos”. [17]
Estes sentimentos de impotência diante da exploração impiedosa são anteriores à introdução do transplante cirúrgico. Na verdade, histórias de assassinos brancos espreitando sul-americanos pobres querendo partes de seus corpos cabem numa tradição nativa que já existia muito antes da adoção e do transplante se tornarem questões importantes. Um dos ogros brancos que abundam nestas lendas tradicionais é o ‘pishtaco’ dos ​​índios andinos, um ladrão da noite que recolhe gordura humana. [18] Ele vende o seu espólio para fábricas (como um lubrificante) ou às empresas farmacêuticas (como base para medicamentos). Dizia-se que a gordura indígena também era usada para dar a partida em motores a jato. Os monstros não desapareceram com o tempo e estão atualmente à procura de córneas e rins.

A Gangue do Euro-Rim

O temor de médicos cruéis que prosperam sob os telhados de chapa de ferro corrugada da América do Sul existe também no oeste americano e nos apartamentos de luxo europeus. Embora as emoções não se elevem tanto como no terceiro mundo, os holandeses, por exemplo, têm os seus próprios rumores sobre partes de corpos roubadas. Em 1990, uma lenda urbana circulou na Holanda, que é um espelho das versões latino-americanas. Uma história conhecida e acreditada contava como um empresário ou um turista visitando o Brasil (ou a Tunísia ou a Turquia) é anestesiado por seqüestradores e ao voltar a si descobre que um dos seus rins está faltando. [19]
Desde 1992 uma nova versão está circulando, desta vez estrelada por uma criança, em vez de uma vítima adulta. Em uma excursão com os pais para a Disneylândia de Paris eles perdem de vista um dos seus filhos. Depois de um tempo o menino [20]  é encontrado em um banco, pálido e confuso, com uma grande cicatriz que marca o local onde seu rim foi extraído.
Essas histórias surgiram apenas duas semanas depois que o parque temático de Paris abriu as suas portas em 1992. Elas não apenas assustaram os pais holandeses: os pais alemães, suíços, austríacos e suecos também temem pela segurança dos bebês na EuroDisney. Apesar disso, nem mesmo uma única vítima – ou seus pais – jamais apareceu. A Disney nega que o incidente tenha acontecido (mas eles negariam, não negariam?). A história é um exemplo clássico de uma lenda urbana contemporânea. [21]
De maneira típica a uma lenda, também, é a forma como a história se adapta ao seu ambiente. O assustador seqüestro na EuroDisney reflete uma certa xenofobia, mas não é a expressão de um povo que se sente explorado. Assim como a sua contraparte mexicana, os ladrões de rins parisienses gentilmente retornam as suas vítimas ao local do crime, mas ao contrário dos seus colegas latino-americanos, eles nunca deixam milhares de dólares em dinheiro no bolso.

A Carruagem de Sangue

O pânico moral causado ​​por contos sobre estranhos que seqüestram e matam crianças existe pelo menos desde que a lenda do Libelo de Sangue acusou os judeus de misturar a farinha do pão ázimo da Páscoa com o sangue de crianças cristãs. Entre aqueles numerosos pânicos históricos de rumores há um que é o a imagem do temível roubo de órgãos atual. [22]
Paris, maio de 1750. A cidade está em polvorosa, porque sob os olhos da população a polícia está prendendo as crianças nas ruas, colocando-as em carruagens fechadas, com destino desconhecido. As pessoas resistem; ocorrem tumultos. O oficial de polícia Labbe é pego em flagrante quando agarrava um garoto de 11 anos de idade. O rapaz é libertado pela multidão e Labbe tem que correr por sua vida. Ele entra numa casa e tenta se esconder debaixo da cama, mas seus perseguidores arrastam-no para a rua. Os guardas vêm correndo, libertam-no das mãos de seus captores e levam-no à residência do comissário de polícia. As pessoas cercam o seu refúgio e ordenam a quem está dentro que entregue o seqüestrador. No final, elas arrombam a porta. Há uma troca de tiros, a multidão furiosa leva Labbé para longe dos guardas e o mata com paus e pedras.
De certa forma os parisienses não estão enganados: os policiais ocasionalmente prendem meninos e os colocam na cadeia, sem conceder-lhes um julgamento adequado. Isso faz parte de uma operação para limpar as ruas de vagabundos. Como os policiais recebem uma recompensa para cada criança presa, eles não são criteriosos sobre aquelas que prendem, assim mesmo aqueles cuja idade, comportamento ou estatuto social não se encaixa na descrição correm o risco de serem apreendidos.
Situações ambíguas como essas são criadouros ideais para o boato, e de fato instantaneamente os boatos surgem. As crianças são cortadas, dizem, e sangradas até a morte em uma banheira, pois um príncipe enfermo – ou uma princesa ou até mesmo o próprio rei – tem de se banhar no sangue de crianças. Esta história não se originou na Paris de 1750. Ela já era contada sobre o Imperador Constantino, que se recusou a ser curado desta maneira não-cristã e viu a sua saúde ser restaurada por Deus como uma recompensa por sua retidão.
Em Paris, o então rei Luís XV foi um dos alvos do boato. Por suas atrocidades, ele foi comparado com Herodes, o assassino de crianças inocentes. De acordo com os historiadores franceses Arlette Farge e Jacques Revel, o fato de que as pessoas apontavam para o rei Luís como o autor revela o seu ódio de um governante que tinha se transformado de um benfeitor em um Herodes.
O boato era conhecido na Antuérpia do século XVIII também. [23] Os pais o usavam para alertar seus filhos contra permanecer na rua até tarde, falando-lhes sobre a “Carruagem de Sangue”, uma bela carruagem puxada por cavalos. Dentro dela haveria uma senhora rica que oferece doces para as crianças brincando na rua pedindo-lhes para acompanhá-la ao seu castelo para brincar com a sua filha. Se esta abordagem não tivesse êxito, ela só precisava arrastá-los para dentro. Em seu castelo, seus dedões eram cortados e as crianças sangravam até a morte na banheira de um rei que sofre de uma doença grave que pode ser curada apenas com o sangue de crianças menores de sete anos.
Crianças parisienses forçadas a doar o seu sangue para um membro doente da família real encontram um equivalente exato nas crianças do Terceiro Mundo que são roubadas de seus órgãos para o benefício de ricos ocidentais – na verdade, o boato não mudou realmente em dois séculos e meio. Uma das versões do boato, que gerou problemas em 1768, Lyon, envolvia até transplantes. [24] Para um príncipe mutilado adquirir um braço novo, uma criança nova era seqüestrada todo dia. Dia após dia os cirurgiões tentavam enxertar um novo braço, mas toda vez a operação falhava.
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Versões anteriores deste artigo apareceram nas revistas holandesas Wetenschap, Cultuur & Samenleving (abril de 1995) e Skepter (setembro de 1995), e na minha coleção de lendas e rumores contemporâneos, Der Gebraden Baby (Amesterdã, 1995). Véronique Campion-Vincent, Todd Leventhal e Eduardo Mackenzie foram todos muito generosos em partilhar as suas opiniões e materiais de pesquisa.
 
Disponível em: http://archive.is/awRoP#selection-1413.0-1961.383